domingo, 23 de março de 2008
Canibalismo intolerável
Ao longo do tempo os avanços tecnológicos marcaram a forma com que os homens viam e sentiam a vida social. Mas foi sempre possível constatar que o ciclo das inovações tecnológicas padecia de um pecado original: cada problema que resolviam outros mais inquietantes causava. E como hoje não existe quase intervalo entre as novidades científicas e sua aplicação prática, esse fenômeno se agrava continuadamente. Qualquer nova descoberta faz com que o "marketing" passe a considerar ultrapassadas as máquinas e os instrumentos que representam a solução tecnológica imediatamente anterior. Uma recente frase, de Bill Gattes, consagra esse consumismo irracional: “nossa meta é tornar os nossos produtos obsoletos antes que os concorrentes o façam”. Uma conseqüência crítica, da evolução tecnológica, foi à aceleração da migração em direção aos centros urbanos. Essa onda incontrolável reúne uma crescente legião de desesperados. Ávidos por usufruir os benefícios do progresso eles invadem a periferia das cidades mais desenvolvidas ou supostamente com melhores condições de vida e trabalho. A solução, obviamente, está na criação de estímulos inversos, capazes de possibilitar a fixação desses migrantes no campo. Mas isso esbarra em dificuldades políticas históricas, decorrentes da estrutura agrária medieval de nosso país. Enquanto isso não se viabiliza, urge intensificar o trabalho de integração dos aglomerados urbanos periféricos consolidados, assegurando-lhes os serviços públicos básicos: saneamento, assistência médica, água, luz e amparo legal. Os projetos já executados, em nosso meio, transformando favelas em bairros, demonstraram que essa empreitada inadiável custa menos de dois salários mínimos, por habitante. Há quase dez anos já dizia o economista Carlos Lessa: “Caso se colocasse”, como meta anual, atender a quatro milhões de pessoas, no conjunto das cidades brasileiras, o gasto seria de dois bilhões de dólares por ano; no final de 10 anos, alcançaríamos um total de 40 milhões de beneficiários, a um custo de 20 bilhões de dólares... o que representa apenas 7% do produto interno bruto (PIB). Só tentativa infeliz de salvar o real, da especulação monetária, que de nada valeu, o governo federal desperdiçou o que daria para custear projetos de inestimável alcance social. No universo do consumo o que consagra a distinção é a posse de um bem e não o seu uso; por isso o desejar é muito mais importante do que o possuir. Ora, numa sociedade de pobres e miseráveis, completamente desamparados, os que têm êxito tornam-se um modelo absoluto do desejo. E esse sentimento aumenta a necessidade de dominar o outro ou até mesmo eliminá-lo, sempre que ele representa um obstáculo à realização desses objetivos idealizados. Esse desejo incontrolável e o medo social epidêmico explicam o crescimento de tudo o que é clandestino e ilegal, pela necessidade, quase incontrolável, de transgredir princípios, estatutos ou leis. Mas o recrudescimento de todas as formas de extremismos é, certamente, a manifestação mais assustadora, na atual escalada dos conflitos sociais. É um fato que está tornando caótica a realidade urbana, contrapondo verdadeiros “neoestados” ao Estado legal. No hipermercado social contemporâneo os problemas do viver e do sobreviver ameaçam seriamente a saúde mental de todos os cidadãos. E esse estado de coisas está se agravando com a irrupção universal de múltiplas formas de violência, fazendo com que o comportamento humano oscile entre o destemor irracional e o pavor paralisante. Chegamos ao que Mario de Andrade profetizou: a um grau de canibalismo social intolerável. A ferocidade é o sentimento que identifica os que muito tem com os que nada possuem; os “territórios”, grandes ou minúsculos, são defendidos com o mesmo primitivismo e brutalidade. E nada tem conseguido impedir a multiplicação dos comportamentos mais regressivos.
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