quinta-feira, 10 de abril de 2008

A destrutividade humana

Alvaro Acioli
A agressividade humana estaria aumentando ou suas manifestações sofreram a influência do avanço tecnológico e, principalmente, do processo de urbanização das cidades ?
A violência, sob as mais diversas formas de apresentação, transformou-se no foco central de atenção da sociedade. Discute-se hoje como se a violência fosse uma realidade em si mesma, não mais explicável pelo saber teórico das disciplinas que se ocupam do comportamento humano, para transformar-se num problema de segurança pública.
A idéia fixa da insegurança tornou a busca da segurança a grande obsessão da sociedade global. E providencias nesse sentido, individuais, sociais ou internacionais, instrumentam o debate sócio-político, na busca de soluções e alternativas.
Os operadores do direito clamam por agravamento dos castigos penais. Os políticos falam em tolerância zero com os transgressores. Pode-se dizer que o combate à violência é o tema permanente dos principais veículos de comunicação de massa.
À guisa de uma pequena contribuição ao debate instalado, faremos uma sucinta análise de reflexões que nos legou Erich Fromm, sobre o tema, principalmente em seu livro “Anatomia da Destrutividade Humana”.
Diga-se, desde logo, que essa preocupação obsessiva castiga nossa sociedade há muito tempo. Quando o jornal Estado de São Paulo publicou ampla reportagem sobre a violência, em 1985, já ocorriam no mundo quarenta e um focos de tensão e zonas de guerra. Esses acontecimentos predominavam nos países do Terceiro Mundo, que é o cenário onde repercutem as disputas entre as grandes potências.
Os conflitos variavam desde guerra entre Estados, incursões ou invasões, incidentes de fronteira, movimentos de guerrilha, atentados terroristas, zonas de tensão, guerras civis, rebeliões locais religiosas ou nacionalistas e lutas contra ocupação estrangeira.
Os confrontos bélicos contemporâneos foram de tal forma incorporados à realidade globalizada que perderam em importância, para a grande mídia. E só retornam a esse palco iluminado quando grandes atrocidades são praticadas ou fatos de extrema gravidade – ainda não banalizados pelo noticiário continuado – voltam a acontecer em alguma parte do planeta.
Em sua obra, Fromm tentou uma compreensão pessoal da destrutividade humana, também preocupado em identificar novos caminhos para intervenções pontuais ou contribuições preventivas. O seu livro, já citado, é um documento denso, sério e preocupante.
Mas é também uma análise lúcida e rica em reflexões estimulantes. Mostra, por exemplo, que o marco do ingresso na nova sociedade urbana foi a consagração dos controles : sobre e natureza, os escravos, as mulheres e as crianças.
Além de modificar os processos naturais, o homem patriarcal conseguiu, com sua técnica, o domínio e o controle do próprio homem ; criou lideranças que em nome da organização social assumiram o poder e o seu exercício de uma forma discricionária.
A tese básica desse modelo era a de que somente o exercício do poder permite o controle da natureza e do próprio homem. A crença na superioridade física e mágica dos dirigentes consagraria a obediência e a submissão, promovendo a acomodação e o conformismo geral.
Na pré-história o exercício da autoridade era racional ; os líderes guiavam e aconselhavam o povo, sem explorá-lo e buscando, preferencialmente, uma aceitação voluntária de suas lideranças.
Já a autoridade do modelo patriarcal, que lhe sucedeu, consolidou-se pela força e pelo autoritarismo. Explorava o medo para consolidar o temor reverencial e a subserviência, os dois baluartes de seu pensar autocrático.
Começou provavelmente aí o exercício do poder pelo domínio que exalta a servidão, no qual a aparência de organização e eficiência apenas encobre a estrutura sádica subjacente.
A mutilação, a tortura e a morte dos adversários, aprisionados, era motivo de glória e de exaltação, para os monarcas egípcios. “A essência do sadismo é a paixão pelo controle ilimitado, divino, sobre os homens e as coisas”. Fromm tentou demonstrar que as sociedades não-agressivas não são tão raras, como muitos acreditam. Para ele, por outro lado, a agressividade não é somente uma manifestação individual ; faz parte de um quadro maior, guardando uma relação direta com o grau de organização dos agrupamentos sociais, a forma de funcionamento do poder e a divisão de classes, entre muitos outros aspectos. A agressividade é entendida como parte do caráter social, não sendo vista como traço isolado do comportamento individual.
Uma cuidadosa análise de vários estudos antropológicos levou Fromm a dividir as trinta sociedades examinadas, em três grupos : AFIRMATIVAS DA VIDA, AGRESSIVAS NÃO-DESTRUTIVAS E DESTRUTIVAS.
A preservação da vida e o desenvolvimento humano, sob todas as suas formas, são os pontos comuns às ditas sociedades afirmativas da vida.
Nelas, o relacionamento entre as pessoas é realizado com um mínimo de hostilidade, violência ou crueldade. Não existem punições drásticas e o crime é acontecimento raríssimo. A guerra ou não ocorre ou tem dimensão insignificante.
As crianças são socializadas com ternura e não recebem punições físicas severas. Existe igualdade no tratamento entre homens e mulheres ou as mulheres não são exploradas nem humilhadas.
Repressão sexual, inveja, cobiça e exploração são sentimentos raros. A cooperação social se sobrepõe ao individualismo e à competição. É próprio somente aquilo que é usado ; ninguém acumula o que não precisa ou não consegue utilizar. A alegria predomina sobre o humor depressivo.
As atitudes comunitárias mais valorizadas são a lealdade e a confiança. Curiosamente, entre essas sociedades, existem algumas com fartura de alimentos e outras com altos índices de escassez.
Os fatores econômicos, a pobreza e a riqueza não são estímulos determinantes ou decisivos no desenvolvimento do perfil comportamental predominante.
Quanto às sociedades agressivas não-destrutivas Fromm observou que nelas a agressividade e a guerra são ocorrências comuns, embora não assumam grande relevância social ; e que o mesmo ocorre com a competição e o individualismo.
Embora não sejam sociedades dominadas pela destrutividade, crueldade ou desconfiança, a cordialidade e a lealdade não são práticas costumeiras. Tratam-se, enfim, de sociedades autoritárias, onde é muito acentuado o desejo ou a necessidade de adquirir, possuir e mandar.
Por fim, as principais características das sociedades destrutivas são : relação interpessoal marcada por acentuada violência, destrutividade e agressividade - tanto entre os seus membros quanto contra outros grupos ou sociedades.
A crueldade e o sadismo dominam a cena cotidiana. A guerra é praticada por prazer ; a perversidade e a traição são atividades rotineiras. A hostilidade, a tensão e o medo impregnam a atmosfera que se respira nessas sociedades.
A competição apresenta altos índices . A apropriação e o não uso, é o que define o modelo da propriedade. A busca do poder, pelo poder, é a grande meta individual.
O exemplo mais expressivo desse grupo foi oferecido pelos Dobuanos, povo estudado por Ruth Benedict. Resumo o resultado desse trabalho : “A vida em Dobu incentiva as formas extremas de animosidade e de malignidade... Os dobuanos vivem sem culpa os piores pesadelos de vontade maléfica do universo. A virtude consiste em selecionar as vítimas sobre as quais se poderá jogar a malignidade atribuida, a um só tempo, à sociedade humana e aos poderes da natureza. Toda a existência lhes surge como uma luta implacável, em que os antagonistas mortais são lançados uns contra os outros, numa disputa de cada um para alcançar os bens que a vida oferece. A suspeição e a crueldade são as suas armas de confiança nessa luta. Eles não concedem nenhuma misericórdia mas também não esperam recebê-la de ninguém nem em qualquer circunstância”.
Nossa sociedade apresenta pontos de identidade e de semelhança com todos os grupos sociais referidos. Os fatos evidenciam que permanece a incapacidade social de conviver, harmonicamente, com a crítica radicalizada e com os que violam seus paradigmas comportamentais.
Muitos freios naturais foram sendo abandonados pelo homem em sua longa caminhada. Entre os humanos, diversamente do que acontece com os animais, “lobo continua comendo lobo”.
O início da humanidade continua dependendo da capacidade humana de distinguir o bem do mal, como as religiões e as filosofias insistem desde tempos imemoriais.
A loucura não pode mais continuar a ser considerada como manifestação individual exclusiva, mas como um fenômeno social - uma representação particular, assumida no interior de um sistema social que lhe deu origem.
O mesmo pode ser dito da violência humana e de sua destrutividade. Nossa sociedade está desafiada a ressocializar-se por inteiro.
Ajuda a manter a esperança de um grande avanço ético, no cenário humano, a certeza de que nosso destino não depende irremediavelmente desse presente povoado por tantos comportamentos regressivos, individuais e sociais.
É certo que será por ele influído mas esse mesmo presente pode nos conduzir a um universo de possibilidades infinitas.
http://aaciolitravessia.blogspot.com/2008/04/o-problema-da-destrutividade-humana.html

Um comentário:

Mtnos disse...

Comecei a ler seus artigos hoje e já me identifiquei com seu pensamento. Penso que nossa espécie está em processo de extinção devido simplesmente a uma idiotice congênita e não à sua loucura, pois a inteligência seria hoje suficiente para curar essa loucura já que existem terapias já testadas. Isto não significa porém, que devamos abdicar da tarefa de construir uma definição de loucura social, para o que aguardo a sua orientação.
Obrigado
Mtnos Calil
Ideologia zero, narcisismo zero.

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